Destaques:

Suíços Protestantes em Angola…- Sousa Jamba

As minhas primeiras memórias do avô Mateus Mamedes Malanga Kanjila remontam a um tempo em que eu mal lhe chegava à cintura, talvez aos quatro anos. Ele já era então esse colosso discreto de rectidão e saber, figura alta e firme que a minha mãe contemplava com uma espécie de devoção calma. Falava umbundu com o sotaque osemula que vinha de Malanje, uma inflexão que parecia trazer no timbre a poeira das caravanas do Norte; e, prodígio ainda maior para o meu entendimento de criança, falava inglês, como quem abre uma janela para um céu que ninguém mais na aldeia conseguia ver.

 

Vejo ainda a varanda fresca da missão de Chisamba, as paredes caiadas a beberem a sombra, o cheiro de capim-limão a subir das jarras de limonada que as senhoras americanas sorviam com parcimónia no açúcar. O avô movia-se entre aqueles visitantes de pele clara com uma elegância estudada, trocando frases que para mim eram pássaros de outra latitude, pousados por instantes sobre a mesa antes de voltarem a levantar voo. Chamava-me com um gesto breve, pousava a mão larga na minha cabeça e apresentava-me como se eu fosse o melhor fruto da sua horta. Nesse gesto simples nasceram duas fidelidades que nunca mais me abandonaram: a língua inglesa e a terra lavrada, ambas ensinadas por ele com a mesma gravidade com que abria a Bíblia ao anoitecer.

 

Desde então acompanham-me perguntas que ainda não sossegaram. Quem eram, afinal, aqueles americanos que apareciam no planalto a anunciar um reino invisível; de que país vinham as vozes que se misturavam ao umbundu na varanda de Chisamba; como é que tantos mundos cabiam no mesmo horizonte de milhos e eucaliptos. Entre esses forasteiros havia um grupo que, mesmo em criança, me causava estranheza particular: os suíços. Na minha imaginação infantil, a Suíça era feita de cofres fechados, códigos bancários, relógios que nunca se atrasavam. Parecia impossível que essa gente de precisão fria tivesse deixado os Alpes para vir plantar escolas e capelas no coração poeirento de Angola. Com o tempo fui aprendendo que, na tapeçaria de bandeiras que recobre o planalto central, eles merecem, se não o lugar da ribalta, pelo menos uma cadeira firme junto ao lume.

 

Visto de longe, o planalto não é um mapa, é um cobertor cosido com remendos que vêm de muito longe. Ali, onde as antigas caravanas de Benguela se cruzavam com as picadas que desciam do Kwanza, americanos, canadianos, britânicos, afro-americanos e alguns suíços foram fincando estacas, convencidos de que traziam luz ao interior de um império distraído. As línguas chegavam como rios diferentes a confluir no mesmo leito. O murmurinho mais discreto, o menos vistoso, seria precisamente o suíço, mas é muitas vezes o murmúrio que resiste quando o clamor se cala.

 

A história, como quase sempre, começa pelos que vinham investidos de grandeza. Em 1885, o bispo metodista William Taylor desembarcou em Luanda com dezenas de missionários e caixotes de sonhos embrulhados em mercadoria. Subiram o Kwanza em barcaças pesadas, ergueram escolas a cheirar a madeira serrada, abriram capelas onde o kimbundu começou a ser língua de oração. Depois chegaram os canadianos, com o seu passo de gente habituada a atravessar gelo, e instalaram-se no Bailundo, Bongo, Camundongo, nomes que ainda hoje soam como estações de um percurso sagrado.

 

Os britânicos vinham em ondas mais lentas: baptistas descidos do outro lado do rio Congo, irmãos de Plymouth que subiam desde a Cidade do Cabo. Frederick Arnot cruzava-se com Silva Porto, e entre garrafas de aguardente e rolos de tecido trocavam-se notícias de almas salvas e de rotas comerciais. No Norte, ensinavam hinos a ecoar até ao Congo Belga, enquanto pregadores afro-americanos, ainda marcados pela memória da escravatura e da segregação, olhavam para os ovimbundu e viam neles um reflexo distante da sua própria história. Tentavam, com a voz rouca de uma dor antiga, erguer pontes de fé entre as duas margens do Atlântico.

 

Foi neste cenário já denso que um jovem suíço encontrou lugar para enfiar a sua agulha. Chamava-se Héli Chatelain, chegou nos anos 1880, leve de bagagem e pesado de línguas. Aprendeu umbundu com a aplicação de quem se adapta a outra altitude, traduziu o Evangelho de João, escreveu cânticos que ainda se entoam em igrejas de adobe. Percebeu depressa que, naquele planalto, a Bíblia tinha de ser paga em milho e sal, que a salvação viajava comodamente em cima das rodas dos carros de bois.

 

Em 1897 regressou e plantou, na orla sul do planalto, a Estação Lincoln em Kalukembe, homenagem clara ao presidente que quebrara correntes noutro continente. Desagradadas com o facto de uma missão em território português ostentar o nome de um presidente americano, as autoridades coloniais foram impondo, pouco a pouco, uma designação mais neutra, e a estação passou a ser conhecida, com naturalidade crescente, simplesmente como Missão Suíça. Sonhava uma comunidade onde antigos escravos lavrassem a própria terra e lessem as Escrituras com olhos descolados da tutela senhorial. A realidade torceu-lhe o ideal: o missionário transformou-se em comerciante, ferreiro, mecânico, importador de enxadas, de rodas e de esperança. O evangelho chegava enrolado em sacas de milho, em facturas de carroças concertadas, em caixas de Bíblias com capas em todas as cores.

Sem império que os protegesse nem igreja-mãe robusta que os sustentasse, os suíços viviam dependentes de um fio de prata que ligava Kalukembe a Neuchâtel, Winterthur, Lausanne. O fio era fino, por vezes quase invisível, mas não se partiu. Em número pareciam pouco, quase nota de rodapé. Em profundidade, tocavam fundo como um poço num ano de seca.

 

Depois da morte de Chatelain, as igrejas suíças recolheram o legado com uma discrição teimosa. As escolas de Kalukembe e das missões Philafricaines formaram rapazes e raparigas que, anos mais tarde, se tornariam vozes firmes do nacionalismo angolano. Alguns atravessaram o mar para estudar na Suíça, regressando com diplomas na mala e um olhar que já não aceitava curvar-se perante o mesmo colonialismo que, ironicamente, lhes abrira a porta.

 

No planalto, filhos de camponeses liam hinos em umbundu escritos por um suíço, ouviam relatos da Guerra Civil americana contados por descendentes de escravos, aprendiam geografia com professores canadianos que falavam de lagos gelados e florestas de bétulas. Rezavam sob o mesmo tecto em que colonos boers entoavam salmos em africâner e, um pouco mais abaixo, administradores portugueses carimbavam papéis em mesas de mogno escurecido. A independência de Angola não germinou apenas em cafés de Lisboa nem em tipografias clandestinas de Luanda; começou também ali, nesse cruzamento improvável de ventos que sopravam de quatro pontos cardeais.

Contactos

Rua 2, Avenida Brazil, Luanda

+244 923 445 566

pontodeinformacao@pontodeinformacao.com

Siga-nos

© Todos os direitos reservados.