Em 1997, depois da queda de Mobutu, naquele contexto em grande medida desencadeado pelos acontecimentos que se seguiram ao genocídio do Ruanda, escrevi um artigo de opinião no Guardian que muitos consideraram estranhíssimo. Sustentavam que eu exagerava. Eu argumentava que não haveria paz no Ruanda, um país sobrepovoado com poucos recursos e espaço vital exíguo, se o mundo não levasse a sério os seus problemas económicos: ou compensando-o substancialmente pelo genocídio, ou criando, sob égide internacional, mecanismos que dessem ao Ruanda acesso directo à riqueza do Congo, quer através de cessões territoriais, quer através de uma gestão conjunta, ainda que oficiosa, de partes estratégicas da economia congolesa.
Escrevi que, enquanto as preocupações de segurança do Ruanda não fossem encaradas com frontalidade, não haveria paz verdadeira no Congo. Naquele momento, quase ninguém queria ouvir falar disso: Mobutu acabara de ser derrubado, o novo governo de Kabila instalara-se em Kinshasa, mas já era evidente que os exércitos do Uganda e do Ruanda, por detrás dos movimentos rebeldes no leste do Congo, não seriam aliados dóceis, e que se sucederiam choques armados, no fundo disputas pela sobrevivência, directamente ligados ao controlo dos recursos naturais.
Não falo de longe nem por ouvir dizer. Subsequentemente, viajei pelo Congo com combatentes de diferentes facções, estive no leste, conheço o terreno. É a partir dessa experiência que olho para os acordos assinados recentemente em Washington entre a República Democrática do Congo e o Ruanda, mediados pelos Estados Unidos, e vejo neles uma oportunidade e uma prova do quanto aquele artigo estava correcto.
Esses acordos, apresentados como um compromisso de cessar-fogos e de abordar as causas profundas do conflito nos Kivus, reconhecem implicitamente aquilo que então escrevi: que a instabilidade no leste do Congo não se resolve apenas com observadores internacionais ou declarações de boa vontade, mas exige enfrentar as realidades económicas que alimentam a guerra. Pela primeira vez em décadas, parece haver um reconhecimento, ainda que tácito, de que a segurança regional passa pela partilha organizada dos recursos minerais da zona fronteiriça e pela criação de mecanismos económicos que dêem ao Ruanda—e aos seus vizinhos—alternativas à pilhagem disfarçada de insurreição.
Se a comunidade internacional quiser que estes acordos funcionem, terá de fazer muito mais do que redigir comunicados. O Presidente Ruto insistiu na centralidade do sector privado, mas devemos ser prudentes: demasiadas vezes traduz-se em grandes multinacionais articuladas com elites políticas, ou em empresas detidas por ministros para quem o interesse particular fala mais alto. O resultado é sempre o mesmo: comunidades expropriadas da sua própria riqueza.
O verdadeiro sector privado africano tem de emergir do sector informal, que é o coração económico dos nossos países. Vivo no Copperbelt zambiano onde burundeses dominam o comércio retalhista; no posto fronteiriço de Kasumbalesa, colunas de camiões carregam mercadorias. Há ali uma energia empreendedora que vale ouro. É esta capacidade que os acordos deveriam formalizar na região dos Grandes Lagos: transformar essa vitalidade em empresas com escala regional, garantindo que aqueles que carregam mercadorias recebam uma parte digna da riqueza que criam.
Tenho alguma confiança nestes acordos devido à mudança geracional que se observa tanto no Ruanda como no Congo. Tshisekedi e Kagame pertencem à geração marcada pelo genocídio e pelas guerras dos anos 90, mas os jovens que implementarão os acordos no terreno têm outros horizontes. Não querem matar-se em nome de causas antigas; vejo neles abertura ao diálogo e, sobretudo, aos negócios. A ambição não é morrer pela pátria, mas viver com dignidade. Quando as pessoas querem ser ricas e não mortas, o terreno para a paz torna-se fértil.
O mundo deveria abordar a região como os Estados Unidos abordaram o Japão pós-guerra: não apenas com ajuda humanitária, mas com quadros técnicos a viver no terreno, desenhando planos económicos sérios. Gente capaz de identificar saberes e competências locais e integrá-las nas cadeias de valor da mineração.
Se os recursos minerais começarem a gerar receitas que cheguem às casas das pessoas, para pôr filhos na escola e pagar hospitais, muitos dos que hoje empunham Kalashnikovs amanhã vestirão o macacão de mineiro. Mas falta assegurar distribuição justa da riqueza. Isto chocará elites habituadas a considerar obsceno que um pobre progrida economicamente. Terão de lidar com essa “obscenidade” se quiserem estabilidade.
Passaram-se vinte e oito anos desde aquele artigo no Guardian. Na altura, vozes respeitáveis (incluindo Rakiyah Omar, que escreveu ao jornal a contestar que se devesse dar espaço às minhas ideias) consideraram as minhas propostas inaceitáveis, quase imorais. Hoje, os acordos assinados em Washington reconhecem, ainda que indirectamente, que a paz nos Grandes Lagos exige precisamente aquilo que então defendi: mecanismos económicos concretos que transformem a geografia da riqueza mineral numa fonte de estabilidade partilhada. O tempo acabou por me dar razão. Resta saber se a implementação destes acordos terá a coragem que a sua assinatura, finalmente, demonstrou.
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