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Jessica Pitbull no Bailundo- Sousa Jamba

No Bailundo, no planalto central de Angola, um pastor convoca a congregação para uma vigília de oração que se há de estender até de madrugada. Não é a chuva tardia que o inquieta, nem o pressentimento de uma nova guerra, nem sequer alguma doença que ande a ceifar vidas em silêncio. O motivo da vigília é outro: reza-se, com zelo quase aflito, contra um concerto que ainda só existe em cartazes e rumores, o de uma certa Jessica Pitbull, cantora de milhões de visualizações e dona de um sistema de som capaz de fazer vibrar os telhados de zinco da vila como se fossem latas vazias na ventania.

 

Bailundo não é um lugar qualquer, repetem os seus habitantes com uma espécie de orgulho teimoso. Gosta de se pensar como o coração vivo da cultura ovimbundu, e há quem jure que o próprio chão ali tem memória. No alto de uma colina ergue-se o antigo complexo real, residência de um rei jovem e polido que, entre audiências solenes e notificações de WhatsApp, tenta conciliar o peso cerimonioso do título com os mundos que lhe entram pelo ecrã do telemóvel. A comunidade trata a sua história como se fosse património sagrado: fala da chegada dos missionários encaminhados para Chilume, recorda famílias protestantes e católicas de nome feito, enumera linhagens de elite, ramos colaterais da realeza, velhos chefes e matronas. Ao mesmo tempo, Bailundo surpreende pela abertura ao mundo. Muitos dos seus filhos viveram anos em Luanda, estudaram, fizeram biscates, regressaram com diplomas, histórias e telemóveis cheios de músicas novas. Entre essa gente, a notícia da vinda de Jessica espalha uma excitação quase infantil.

 

É neste ambiente de orgulho vigilante que o pastor se ergue diante do púlpito e, com a voz carregada de gravidade, anuncia que Jessica Pitbull e as suas colegas, famosas pelas nádegas descomunais moldadas em clínicas brasileiras, trarão consigo uma autêntica tempestade de indecência. Na sua imaginação, aqueles corpos reconfigurados e aquelas coreografias francas são brechas abertas nas muralhas morais da comunidade. Para adensar o alarme, acrescenta que, na noite do concerto, será possível ver, misturados na multidão, homens vestidos de mulher. O espetáculo, ainda inexistente no mundo real, é assim figurado como uma invasão saída de Luanda, um ataque frontal à ordem local, com luzes coloridas e baixos estrondosos.

 

Para compreender esta guerra de nervos, é preciso seguir o fio da retidão bailundense. Essa retidão nasce do cruzamento entre o cristianismo missionário e antigas convenções ovimbundu de modéstia, disciplina e vigilância mútua. A respeitabilidade feminina mede-se pelo comprimento da saia, pela contenção do passo, pelo olhar que se baixa à passagem dos mais velhos. O corpo é policiado por mães, tias, sogras, vizinhas, catequistas, e esse policiamento acaba por se acomodar dentro da cabeça na forma de provérbios, ameaças, recordações de castigos exemplares. Durante décadas, regras rigorosas de evitamento e sanções severas para qualquer deslize sexual moldaram a paisagem emocional. A mulher é ensinada não como sujeito de desejo, mas como guardiã da honra familiar; uma gravidez fora do casamento ou um rumor insistente de adultério tingem de vergonha um clã inteiro.

 

Essa vigilância constante não apaga o desejo; limita-se a empurrá-lo para recantos laterais, discretos, quase clandestinos. As raparigas crescem a ouvir, de todas as bocas femininas, o mesmo refrão: conter, esconder, calar. Em privado, porém, ensaiam pequenas fugas. Em quartos de chapa e cimento, longe do olhar das avós, vestem minissaias, tops colados ao corpo, saltos que fariam rir qualquer tio severo. Dançam diante do espelho, observam o próprio corpo com curiosidade divertida, tiram selfies que quase nunca sairão do telemóvel. Por instantes, encarnam para si mesmas a figura da estrela de palco; logo depois, a sessão termina, o pano comprido volta ao lugar, o vestido modesto reaparece, a postura compõe-se para sossegar os mais velhos. Aos poucos, constrói-se uma vida dupla: recato ostensivo em público, exuberância cuidadosamente confinada em privado.

 

É neste ponto que a figura de Jessica Pitbull ganha outra espessura. Em muitas cidades africanas, a música popular converteu-se num laboratório onde as mulheres tentam desmontar respeitabilidades herdadas e legitimar o próprio desejo. O palco, amplificado pela circulação digital, funciona como lugar de ensaio de novos modos de corpo. Quando Jessica canta em primeira pessoa sobre querer, estar pronta, gozar, desloca o centro da narrativa. Já não é o homem que exibe potência, enumera conquistas e transforma o corpo feminino em troféu; é uma mulher que descreve, com detalhe e atrevimento, aquilo que quer que lhe façam, o modo como quer ser tocada, o ritmo de que gosta.

 

Este gesto inscreve-se numa constelação mais vasta de sonoridades: do dancehall jamaicano ao kuduro luandense, do afropop às coreografias virais de TikTok e YouTube. Bravatas sexuais, movimentos de anca ostensivos, gargalhadas obscenas recuperam, em chave feminina, tradições masculinas de se gabar. Ao assumir o tom do conquistador, Jessica reescreve o guião. Retira ao homem o monopólio de narrar o encontro erótico e demonstra, na prática, que o desejo feminino pode ter voz, vocabulário e cadência próprios. Para o pastor, tudo isto é pura obscenidade; para outros, é um acerto de contas tardio com velhas assimetrias, em que os homens se vangloriavam sem pudor e as mulheres eram educadas para consentir em silêncio.

 

O conflito não se trava apenas no adro da igreja; estende-se pelos ecrãs minúsculos dos telemóveis. A juventude de Bailundo vive mergulhada nesses aparelhos. TikTok, WhatsApp, Facebook enchem-se de vídeos audaciosos, piadas subidas de tom, coreografias que fariam desmaiar muitas catequistas. Corpos femininos a dançar, letras atrevidas, desafios coreográficos são hoje parte da rotina de quem tem dados móveis e alguns minutos livres. Já existe um Bailundo digital que normalizou essas imagens e essas linguagens, ao lado de um Bailundo visível que continua a fingir que nada disso faz parte da vida local.

 

Quando o concerto finalmente tiver lugar, pouco fará além de ampliar, em espaço público, aquilo que há muito circula em privado. Naquela noite, as duas narrativas hão de cruzar-se no mesmo terreiro de terra batida. Os homens serão, quase de certeza, o público mais ruidoso; Jessica chama-os, provoca-os, joga com o olhar masculino. No entanto, subverte-o, porque é uma mulher quem dita os termos da cena erótica. As raparigas na assistência, ao gritarem os refrões e imitarem os movimentos, experimentarão, ainda que por algumas horas, um eu desejante que contraria anos de educação para a obediência discreta. Nesse instante, a oração do pastor mostrará os seus limites: aquilo contra o qual reza já entrou nas casas, nos bolsos e nos sonhos das filhas de Bailundo.

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