A evocação do falecido diplomata Mano Jardo Muekalia provoca hoje, entre muitos negociadores ocidentais, um espanto quase ingénuo. Nas décadas de 1980 e 1990, eles tinham diante de si jovens mal saídos da casa dos vinte anos. Sentados do outro lado da mesa, homens com décadas de carreira diplomática encontravam uma serenidade que não esperavam. O Mano Jardo, Mano Tito Chingunji e outros quadros da mesma têmpera entravam no centro de decisões difíceis com a compostura de quem leva o mapa na cabeça. No aparelho de inteligência militar, os exemplos eram ainda mais vertiginosos: Isidro Peregrino Chindondo, com dezenove anos, sustentava um posto que, noutras latitudes, exige carreira longa e cabelos brancos.
Uma das explicações, observada a distância, não é tão enigmática quanto se supõe: chama‑se educação. No ensino colonial, o velho sétimo ano era uma porta estreita, reservada e difícil de atravessar para as famílias negras. Porém, uma vez dentro, o regime era de ferro: leitura exigente, escrita precisa, disciplina mental e método. Quem passava por essa oficina saía sabendo conjugar verbos irregulares em latim, declamar Camões de cor e resolver problemas de geometria descritiva sem pestanejar. Essa musculatura intelectual era perceptível no primeiro parágrafo, no primeiro memorando ou no silêncio bem colocado.
Consequentemente, quem concluía essa etapa chegava ao mundo adulto com uma vantagem real, quase física. Convém lembrar um detalhe que muda o retrato: muitos desses jovens tinham terminado o sétimo ano do ensino secundário e estavam prontos para o ensino superior, com a mente habituada ao trabalho longo, ao argumento bem montado e à página difícil que não se abandona a meio. A comparação pode soar provocatória, mas resiste ao essencial: alguém formado por essa disciplina não se mede facilmente por certos diplomas atuais. É um facto.
A UNITA encontrou‑se, assim, com rapazes capazes de falar um inglês limpo e de passar para o francês com naturalidade (como confirmam as gravações antigas nas quais se ouve um Mano Jardo ainda jovem, completamente à vontade nas duas línguas). A decisão seguinte não exigiu génio, mas visão prática: enviá‑los ao exterior, para academias e cursos onde a matéria se despeja depressa e a exigência não perdoa. Eles aprenderam rapidamente, porque já traziam a mente treinada para o esforço prolongado.
Alguns percorreram caminhos improváveis. Houve quem passasse por Marrocos, acumulando formação militar e treino operacional, incluindo salto paraquedista; houve quem se especializasse, desde cedo, em inteligência, completando cursos com instrutores estrangeiros. Contudo, a lista de destinos não é o ponto: a base é o que importa. Eles não temiam livros grossos com mil páginas, não recuavam diante de biografias longas (Churchill, Attlee, Ataturk, Zhukov, Giap) nem diante de autores pesados como Marx e Lenine. Pelo contrário, eram capazes de gastar fins de semana e noites a ler até à última linha e, depois, escrever notas estruturadas, frias e úteis sobre as lições arrancadas ao papel.
Havia ainda um traço menos citado, mas decisivo: um amor profundo pela música. Isso importa porque a música ensina algo que nenhum manual de diplomacia consegue transmitir: a arte de escutar camadas, captar harmónicos e saber quando entrar e quando calar.
No caso de Mano Jardo, esse ouvido era tão amplo que alcançava a ópera com a mesma naturalidade com que outros se aproximam do jazz ou do semba. Quando se pergunta a quem lidou com ele por que motivo se tornou um diplomata tão fora de série, a resposta regressa muitas vezes ao mesmo ponto: a capacidade de entrar em terrenos desfavoráveis à UNITA precisamente quando a organização era descrita, com ligeireza cruel, como marioneta sul‑africana e os seus dirigentes como meros bandidos. Ele conseguia estar naquela sala, ouvir tudo aquilo e não se fechar.
Nele havia uma combinação rara de calma diante do fogo. Conta‑se que, numa negociação particularmente tensa, depois de ser tratado como fantoche de Pretória, o Mano Jardo esperou que a sala esfriasse, repetiu o argumento do interlocutor com exactidão cirúrgica e, só então, pronunciou a frase desarmante: «Ouvi o seu ponto.» Não era formulaica. Ele reproduzia os argumentos do outro com tal precisão que ficava provado que tinha escutado. Apenas depois colocava a sua parte, sem gritos nem chantagem moral: «Sim, o apartheid é um sistema horrível; mas a UNITA também reclama o direito à autodeterminação e à luta por um regime multipartidário.» E, por estranho que pareça, o caminho abria‑se.
Essa eficácia estava ligada a uma sofisticação concreta, nada ornamental. Se a conversa deslizava para a música, ele acompanhava: jazz, ópera, o que fosse. Se o tema passava pelo desporto, entrava também: basquetebol, por exemplo, como assunto de afinidade humana antes de ser bandeira. Se surgiam questões teológicas, respondia com naturalidade. Filho de pastor, permitia que pessoas religiosas, mesmo em desacordo político, se sentissem à vontade na sua presença.
Por fim, havia uma disciplina íntima: ele nunca tomava as coisas como ofensa pessoal. Discordava, por vezes com firmeza, mas mantinha a convicção serena de que o tempo, as circunstâncias e a persistência acabam por empurrar certas verdades para a superfície, não por cálculo, mas pela natureza dos princípios que se protegem.
É assim que, na política real, se tornam possíveis vizinhanças improváveis e sobrevivências que, vistas de fora, parecem milagres. Por isso, ainda hoje, quando certos diplomatas ocidentais se recordam daqueles rapazes de vinte e poucos anos, o espanto dá lugar a outra coisa: respeito.
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